Fala Sócio

Fala sócio - com Ricardo Aranha

Matérias recentes em publicações de mídia leiga citam modelos computacionais que projetam a forma do corpo humano pelo uso intensivo da tecnologia, milhares de anos à frente. O resultado apresentado é um indivíduo curvado, com mãos em postura de garras, cotovelos flexionados, uma segunda pálpebra para suportar a iluminação das telas, etc1. Seria inevitável chegarmos a essas diferenciações anatômicas em um futuro distante? 

No caso descrito, o uso constante de tecnologia, seja qual for ela, não afeta da mesma forma os indivíduos e nem produz tais anomalias, a não ser algumas delas, e por uma conjunção bastante rara de fatores. Ainda menos, produziria gerações de anômalos. Pensar o oposto é aceitar as regras evolutivas puras de Lamark, um naturalista francês do século XVIII, antecessor de Charles Darwin, e que elaborou à época teorias sobre a evolução dos seres vivos2. Lamarck considerava as pressões do ambiente sobre a forma física dos organismos como o motor de mudanças evolutivas, que seriam transmitidas aos descendentes. Embora tenha contribuído para o estudo da evolução, o bojo original de suas ideias é agora rejeitado. A própria tecnologia produz soluções inusitadas, e cada vez menos é necessário estar “imóvel” em determinado ambiente para permanecer conectado à internet. Projete isso para o futuro e vislumbre cenários alternativos para nossa espécie. Mas, a depender da forma como as ideias nos são ofertadas hoje em dia, crenças infundadas parecem ressuscitar.

Dentro das falácias lógicas, a da “bola de neve” ou da “ladeira escorregadia” leva-nos a acreditar que se algo acontece, levará a uma sequência inevitável de eventos, resultando em situações desfavoráveis ou até catastróficas3. Na odontologia é frequente ouvirmos que, se há desgaste do esmalte dentário, isso prenuncia a “perda dos dentes”, o desaparecimento completo da coroa ou até mesmo da raiz dentária. A mesma coisa ocorre com a “perda óssea alveolar”, taxada como patologia grave e que inevitavelmente condenaria o dente à extração (isso lhe soa familiar?). 

Por fim, já na área de DTM/DOF, o deslocamento do disco articular é para muitos o primeiro passo de uma cascata de infortúnios, difundida por um antigo modelo teórico4. A degeneração articular grave seria inevitável, e até mesmo a perda do côndilo mandibular por reabsorção óssea estaria determinada no futuro (!). Embora casos particulares devam ser considerados, a simples aceitação de situações como as expostas acima é absurda5, descrita dentro das falácias argumentativas, e estimulada por uma visão estreita das especialidades. Nosso caminho a percorrer ainda parece ser longo...


- Ricardo Aranha

REFERÊNCIAS

1- Metrópoles/saúde [Internet}. Brazil. Grupo Metrópoles. 2022. Cientistas projetam como será a aparência do ser humano no ano 3000. Available from: https://www.metropoles.com/saude/cientistas-projetam-como-sera-a-aparencia-do-ser-humano-no-ano-3000

2- Sen S. The Environment in Evolution : Darwinism and Lamarckism Revisited. SSRN Electronic Journal. 2020.

3- Stephen Downes (trad. Júlio sameiro). Crítica/guia das falácias. Brazil. Available from: https://criticanarede.com/falacias.html#foot

4- Wilkes CH. Internal Derangements of the Temporomandibular Joint: Pathological Variations. Archives of Otolaryngology–Head & Neck Surgery. 1989;115(4):469-77.

5- Schiffman EL, Ahmad M, Hollender L, Kartha K, Ohrbach R, Truelove EL, et al. Longitudinal Stability of Common TMJ Structural Disorders. Journal of Dental Research. 2017;96(3):270-6.
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