Muito Além da Dor

Caminhos da fé

No Muito Além da Dor de hoje, temos o trajeto do Dr. Caio Guimarães num caminho de fé até o Santuário de Nossa Senhora de Aparecida. Confira a experiência dele!

O caminho da fé foi inspirado no milenar e mundialmente conhecido caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Ele é a versão abrasileirada e foi criado no intuito de dar estrutura e suporte às pessoas que fazem a peregrinação ao Santuário Nacional de Aparecida. Foi idealizado por Almiro Grings, brasileiro que fez o caminho de Santiago de Compostela por duas vezes e voltou ao Brasil com o propósito de fazer um trajeto de peregrinação semelhante no Brasil. Seu Almiro, junto com dois amigos, começaram em 2003 a fechar parcerias com prefeituras ao longo do caminho da fé para oferecer apoio aos peregrinos, com o seu traçado original começando em Águas da Prata até o Santuário Nacional de Aparecida. No entanto, hoje o Caminho da Fé é uma rota sinalizada por setas amarelas e composto por trechos de estradas de terra, asfalto, trilhas dentro de fazendas e trilhos de trem compondo um percurso que pode variar de 300 a 700 km.

A Basílica de Nossa Senhora Aparecida, conhecida também por Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida,  é um templo religioso católico localizado no município brasileiro de Aparecida, no interior do estado de São Paulo. É o maior templo católico do Brasil e o segundo maior do mundo, sendo menor apenas que a Basílica de São Pedro, no Vaticano. É a maior catedral do mundo, visto que a Basílica Vaticana não é uma catedral. Também é o maior espaço religioso do país, com mais de 143 mil m² de área construída ao longo de todo o Santuário, com visitação anual chegando a 13 milhões de pessoas.

No final do primeiro semestre de 2015, meu irmão, visitando alguns sites na internet, veio com a idéia de fazermos o caminho da fé: comprou na época o guia do Olinto (espécie de manual para ciclo viajantes) e começamos a estudar o trajeto do caminho. Naquela época eu estava cursando o mestrado em DTM e DOF e acabei por não me inteirar muito sobre o percurso, que ficou a cargo do meu irmão que planejou o caminho com as prováveis paradas. Decidimos fazer o trajeto de bicicleta e começar pela cidade de Tambaú, no interior de São Paulo, local conhecidíssimo dos católicos locais por ter sido lar e local de sepultura do padre com fama de milagreiro, Donizetti Tavares de Lima,  conhecido como Padre Donizetti (morreu em 1961 e foi beatificado em 2019). 

Viagem marcada e trechos definidos, começamos a treinar. Porém, como nosso estado (Mato Grosso do Sul) é muito plano, não conseguimos treinar muitas subidas. Para compensar, treinávamos sempre em marcha pesada tentando simular as subidas com maiores inclinações. Infelizmente, o inverno nesse ano foi bem rigoroso o que também dificultou nossos treinos: chegamos a treinar com temperaturas abaixo de 5 graus Celsius.

No final de agosto de 2016, saímos de viagem de carro com nossa equipe de apoio composta por meus pais e meu cunhado. Foram 1000 km de estrada até chegarmos em Tambaú no dia 25 de agosto de 2016. Dormimos e saímos cedo no dia 26 para o primeiro trecho de Tambaú a São Roque da Fartura, com uma parada na pousada da Dona Cidinha que nos recebeu com um abraço maternal apesar de estarmos todos suados e cheio de poeira. Comemos um delicioso bolo de milho e seguimos até São Roque da Fartura e depois Águas da Prata, seguindo nosso cronograma e chegando na cidade onde se inicia o caminho oficial. Esse primeiro dia foi uma amostra do que iríamos passar, foram 84 km com um ganho de altimetria de 1809m. Só nesse trecho já batemos nosso recorde de altimetria em dois anos pedalando. A verdade é que não estávamos prontos pra pedalar tantas subidas e esse primeiro dia foi um belo banho de água fria na nossa esperança de fazer o caminho sem tanto sofrimento, o caminho da fé é duro! Mas não iremos desistir tão facilmente, afinal, em qualquer peregrinação é esperado certa dose de padecimentos.

No segundo dia saímos de Águas da Prata com destino a Ouro Fino, que para mim foi o trecho mais difícil. Nós já vínhamos de um dia muito difícil e nesse trecho encaramos a temida Serra dos Limas, com um altimetria brutal e com o sol forte de 34 graus. Nesse trecho pensei seriamente pela primeira vez em desistir no meio do caminho, só não desisti porque estávamos exatamente no meio do caminho, tanto fazia ir pra frente quanto voltar. Não estávamos fazendo o caminho nem como prova de fé, nem para pagar um milagre agraciado. Foi nessa hora que comecei a rezar à Nossa Senhora Aparecida para me dar força para continuar, pois nunca tinha pedalado em condições tão extremas, calor, altimetria e longas distâncias. Não tinha a menor idéia do que ia encontrar: como relatado acima, não tive tempo para estudar o percurso. Após essas reflexões, fui intercalando entre pensativo e rezando no restante do trecho até a chegada em Ouro Fino. Chegando na cidade, fomos direto para o hotel, estávamos extremamente cansados e com muitas dores. Assim que descemos da bicicleta, minha mãe ajudou massageando nossas pernas e, por alguns momentos, achei que o meu músculo da coxa ia romper de tanta dor! No dia seguinte, acordei com dores em todo o corpo e falei para meu irmão que se a dor não diminuísse nos primeiros 40 minutos pedalando eu ia desistir. Comecei a rezar de novo e, após alguns quilômetros, as dores foram diminuindo e ficaram mais suportáveis, e foi a partir daquele momento que acreditei que realmente poderia chegar até o fim. 

Saímos de Ouro Fino e seguimos em direção a Estiva. Após tantos dias, começamos a pegar o jeito das subidas extremamente íngremes: o esquema era ter paciência, ir devagar e ser constante. Algumas subidas chegavam a 28 graus de inclinação! O jeito era descer da bicicleta e empurrar, quando no meio da subida havia um pedaço de asfalto ou paralelepípedo sabíamos que a inclinação era muito grande, pois usavam esse artifício para possibilitar o tráfego de carros e caminhões. Depois de 67 km e 2145 metros de ganho de altimetria, chegamos em Estiva e tomamos um banho de piscina gelada no hotel para ajudar na recuperação muscular.

Quarto dia. Saímos de Estiva e seguimos para Brazópolis. No final do trecho antes de chegar na cidade, com uma visão privilegiada, descemos cerca de 3 km até chegar a cidade. Como chegamos em boas condições, decidimos ir até a pousada da Dona Inês, que fica ao pé da serra da Luminosa, no meio de um bananal que ela plantou para sustento da sua família. Como havia um fluxo grande de peregrinos, decidiu abrir uma pousada com excelente comida e uma recepção calorosa. Quando chegamos na pousada, encontramos um grupo de 16 peregrinos, sendo 8 mulheres e 8 homens. Os 8 homens desistiram neste dia e as 8 mulheres continuaram no dia seguinte. Acordamos às 5 horas da manhã, tomamos um café e juntos rezamos diante da serra antes de seguirmos em frente. Terminado este percurso em Campos do Jordão, subindo a famosa serra da Luminosa com 7,49 km e com 843m de ganho de altimetria. Na distância total percorremos 31,41 km com 1645 ganho de altimetria. Com certeza, o trecho mais bonito de todo o caminho.

No quinto dia seguimos de Campos do Jordão até o Santuário de Aparecida: esse trecho final foi de 76,75 km com ganho de altimetria de 1708 metros, o trecho mais tranquilo. Assim que chegamos no Santuário, fomos pegar nosso certificado de peregrino e fizemos a visitação noturna do Santuário, o que mudou toda a percepção que temos do santuário cheio e tumultuado durante o dia, para um vazio silencioso durante a noite.

No final, percorremos aproximadamente 400 km com um ganho de altimetria de mais de 16.000 metros. Um caminho que me ensinou muito: aprendi que meus limites, tanto mental como físico, são bem maiores do que eu podia imaginar; aprendi que em um caminho como esse, você só se preocupa com as coisas básicas da vida, como comer e dormir, e aprendi que a fé é importante principalmente em momentos de dificuldade. 

Depois desse caminho, já fizemos o Vale Europeu em Santa Catarina e, esse ano, fiz uma promessa para Nossa Senhora Aparecida que irei fazer o caminho da fé de novo, só que a pé dessa vez. Aconselho a todos que queiram ter uma experiência única que façam o caminho da fé, e principalmente que se preparem para o desafio, que apesar de muito difícil, se torna recompensador. Termino com as palavras do próprio idealizador do caminho, que uma vez questionado do porquê de sair do conforto da sua casa para sofrer em um trajeto como esse respondeu: “Uma vez me perguntaram o que provoca o peregrino a fazer essas caminhadas, e eu respondi que a resposta está apenas em você mesmo experimentar. Caminhes e terás a resposta”, disse Almiro José Grings.

Bem, após tanto pedal e suor, recompensa mesmo somente depois de uns 15 dias de "reflexão" em um bom e reconfortante sofá…

Autor do texto: Dr. Caio Chaves Guimarães
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