Para Profissionais

Entrevista com Dr. Rafael Benoliel

Entrevista feita por Julyana Gomes Zagury em nome da Comissão de Ensino e Pesquisa da SBDOF.

Rafael Benoliel graduou-se em Odontologia com mérito acadêmico na University of London, Reino Unido. Cursou pós-graduação em Cirurgia Bucomaxilofacial na University of London e em Estomatologia / Dor Orofacial na Universidade de Hadassah, Israel. Por sete anos atuou como chefe do Departamento de Estomatologia na Universidade de Hadassah e, posteriormente, tornou-se Diretor do Centro de Dor Orofacial e Disfunções Temporomandibulares da Rutgers School of Dental Medicine, EUA, onde também atuou como Pró-reitor de Pesquisa.

Ele têm publicado frequentemente ao longo de sua carreira e co-editou o premiado livro “Orofacial Pain and Headache” (primeira edição 2008 - traduzido para o espanhol e segunda edição 2015 - traduzido para o português). Atuou em muitos comitês científicos, incluindo os de classificação da International Headache Society (IHS) e Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders (RDC/TMD). Foi presidente do Grupo de Interesse Especial em Dor Orofacial e Cefaleia da International Association for the Study of Pain (IASP) e co-presidente do comitê da International Classification of Orofacial Pain (ICOP). Atualmente, é editor-chefe do Journal of Oral & Facial Pain and Headache (JOFPH).



1- O que fez você querer seguir o campo da Dor Orofacial?

As múltiplas comorbidades em pacientes com dor tornavam difícil e complexo o tratamento de forma abrangente e vi muitos pacientes diagnosticados erroneamente em tremendo sofrimen- to. Eu esperava que, com o treinamento certo, pudesse ajudar esse grupo de pessoas. Foi uma ideia realmente desafiadora e, à medida que me desenvolvi profissionalmente, estabeleci um ótimo relacionamento com os pacientes que me ensinaram ainda mais. Claro que existem outras razões menos científicas, como as oportunidades profissionais, mas acho que uma razão importante foi a orientação que recebi do Dr. Yair Sharav, que continua sendo meu amigo e mentor até hoje. Pessoa inteligente e criativa, Yair realmente apresentou o campo da dor para mim de uma forma que o tornou muito atraente.

2- Você acredita que existe um modelo ideal para um programa em DTM / DOF?

Esta não é uma questão fácil. O tratamento da DOF requer conhecimento sobre dores odontogênicas, dores de origem otorrinolaringológica e outras dores regionais, medicina interna (comorbidades dsistêmicas), farmacologia clínica (ações e interações de medicamentos), neurologia / cefaleia, imunologia, imagenologia, anatomia, fisiologia e habilidades práticas como bloqueios de músculos e nervos, só para citar apenas algumas habilidades essenciais. Cada vez mais a medicina do sono e nosso papel no tratamento desses distúrbios estão sendo ensinados em programas de DTM/DOF. Isso adiciona um novo caminho, mas exige conhecimentos e habilidades extras. Para ser capaz de englobar todas essas habilidades sinto que os cursos precisam ter de 3 a 4 anos de duração (dependendo se um grau acadêmico é desejado) para que se atinja um nível razoável de qualificação.

3- O que você considera essencial para ser incluído no currículo de DTM/DOF tanto em programas de graduação quanto de pós-graduação?
 

O conteúdo do programa de pós-graduação é uma longa lista e delineei alguns dos principais fatores acima. Na graduação, meu primeiro desejo é que haja realmente uma disciplina de DTM/DOF em todas as Faculdades de Odontologia! A base para uma graduação em Odontologia bem-sucedida é o conhecimento profundo e a capacidade de diagnosticar com precisão a dor oral e dentoalveolar aguda. Isso deve ser um pilar, possivelmente multidisciplinar, na graduação. Nesse nível, o objetivo é familiarizar o aluno com as DOF crônicas mais comuns, dentre elas as dores neuropáticas, musculoesqueléticas, neurovasculares e idiopáticas, abordando como elas podem mimetizar dores orais e dentais. Isso dará a capacidade de identificar, abster-se de tentar um tratamento invasivo e encaminhar adequadamente o paciente.


4- ICOP: o campo da DTM/DOF tem se fortalecido significativamente ao longo dos anos através da pesquisa científica, o que nos permitiu entender melhor os diferentes mecanismos e condições de dor. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. Um passo muito importante para as futuras pesquisas foi a publicação da Classificação Internacional de Dor Orofacial (ICOP). Parabéns pela conquista! Agradecemos por tornar realidade este projeto, que é um marco para a área DTM/DOF.

a. O que espera alcançar com o ICOP?

Uma especialidade como a nossa deve ter uma classificação. Caso contrário, estaremos trabalhando 'no escuro'. As classificações são uma linguagem comum com critérios universalmente aceitos. Conseguimos isso com o ICOP, que permitirá a interação clínica e, de forma muito relevante, pesquisas consistentes internacionalmente. O ICOP lida com entidades bem conhecidas, mas as organiza e define: dor dentoalveolar (inacreditável que não tenhamos uma classificação abrangente para isso!), artralgias, mialgias, dores neuropáticas e dores idiopáticas. Além disso, demos o ousado passo de classificar as "cefaleias primárias" que aparecem apenas na região orofacial. Este é um assunto muito importante que tem causado muitos diagnósticos errôneos e tratamentos inadequados. Esperamos que o ICOP se torne o padrão para o diagnóstico. A DTM/DOF careceu desse "padrão ouro" por muitos anos e o ICOP agora abre a porta para pesquisas clínicas com maior rigor metodológico. Os melhores exemplos são como a International Classification of Headache Disorders (ICHD) influenciou a pesquisa em cefaleia e o RDC/TMD que revolucionou o tratamento de artralgias, mialgias, desarranjos internos da ATM e outros distúrbios relacionados. É importante que o ICOP preencha a lacuna com as cefaleias. É tolice tentar compreender a DTM/DOF separadamente das cefaleias: a DOF crônica mais comum é a mialgia que, por definição, inclui o músculo temporal. Portanto, é tanto uma DOF quanto uma dor de cabeça! O ICOP está totalmente integrado com a ICHD e levará a uma maior colaboração com os cefaliatras.

b. Como a comunidade de DTM/- DOF em todo o mundo recebeu a 1a edição do ICOP?

É um processo lento, mas está ganhando impulso. Vários grupos estão traduzindo e alguns artigos foram publicados com base no ICOP. Devemos ser pacientes e perseverar. Os periódicos relevantes devem insistir que os artigos de pesquisa clínica utilizem o ICOP. Assim como insistimos no uso de Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders (DC/TMD) e da ICHD. O JOFPH mudou recentemente suas diretrizes aos autores para refletir isso.

5- Dor Neuropática Trigeminal Pós-traumática (DNPT): nos últimos anos, você publicou uma série de artigos sobre o que é a DNPT, cuja denominação foi estabelecida agora pelo ICOP. Essa condição é um exemplo da importância da padronização de termos, definições e critérios diagnósticos, para que clínicos e pesquisadores possam falar a mesma língua.

a. Você poderia nos contar um pouco sobre as diferenças entre DNPT, provável DNPT e outros termos como Dor Dentoalveolar Persistente, Odontalgia Atípica, etc?

Seria necessário um artigo de revisão para explicar tudo isso! Em geral, alguns sistemas de classificação permitem o uso de "provável" ou "possível" quando nem todos os critérios são atendidos. A classificação de dor neuropática publicada por Finnerup et al. (Pain 157: 1599-1606, 2016) usa possível, provável ou definitivo, dependendo do número de critérios atendidos.


b. O que recomendaria para os métodos de avaliação neurosensorial no ambiente clínico?

O teste sensorial quantitativo consome tempo e requer equipamentos caros que nem todas as clínicas podem pagar. Em centros de referência isso pode ser possível. Em geral, as clínicas de DTM/DOF podem usar instrumentos simples de maneira muito eficaz para testar a hipersensibilidade (sonda dentária), alodinia (cotonete), alodinia ao frio (gelo, etc.). Nos casos em que há suspeita de lesão nervosa, recomendo os testes sensorias quantitativos. Ele mapeia a área afetada e fornece evidências sobre a disfunção do nervosensitivo envolvido. É extremamente útil para acompanhamento também. No entanto, o diagnóstico é limitado e reconhecemos isso.

6- Quais são seus principais objetivos como editor-chefe do Journal of Orofacial pain and Headache - JOFPH? 

Eu gostaria que o periódico fosse “O” periódico para pesquisas sobre DTM/- DOF e transtornos de dor de cabeça relacionados. Esse reconhecimento é medido de várias maneiras: fator de impacto e índices relacionados, número de assinantes, etc. Como é uma revista que representa grupos de DOF internacionalmente eu faço o meu melhor para incluir submissões internacionais, sem sacrificar o rigor científico. Isso também se reflete no aumento do número de editores internacionais associados. Trabalhamos muito este ano para melhorar nossos processos internos, com revisões e decisões mais rápidas, seleção cuidadosa, diretrizes aprimoradas e detalhadas ao autor com base no International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) para a conduta, relatório, edição e publicação de trabalho acadêmico em revistas médicas.

 

7- Embora cada região tenha suas particularidades na sua opinião quais são os desafios predominantes na prática e na pesquisa em DTM/DOF? Para onde está seguindo o futuro da área?

Espero que o estabelecimento da DTM/DOF como especialidade nos EUA seja um gatilho para uma mudança internacional. O status de especialidade remove os profissionais mal treinados que tentam fornecer cuidados em DTM/DOF. Tenho certeza de que a área e a "odontologia do sono" irão se fundir cada vez mais. Para florescer, precisaremos adotar o ICOP e isso mudará à medida que coletarmos dados de pesquisa. O ICOP nos fornece distúrbios definidos para os quais reivindicamos propriedade. Para realmente ocupar o nosso lugar entre as outras especialidades, teremos de colaborar estreitamente com os neurologistas e cefaliatras. Adivinhar o futuro geralmente é desastroso, mas estou confiante de que os principais líderes em todo o mundo estão indo na direção certa. O futuro da nossa profissão depende muito da formação de grupos-chave em todo o mundo e do aumento do número de membros. Precisamos de médicos, pesquisadores e acadêmicos nesses grupos, além de membros suficientes para constituirmos uma “massa crítica”. Isso torna a DTM/DOF uma opção atraente para estudantes e empresas farmacêuticas investirem em pesquisa.

8- O que vem a seguir para você? Você está trabalhando em algum projeto interessante?

Ainda estou intimamente envolvido com a Rutgers, tanto na pesquisa clínica quanto na básica. As linhas de pesquisa continuarão e estou animado com a descoberta com minha colega Dr. Korczeniewska (Eur J Pain 22: 875-888, 2018) sobre as diferenças na expressão genética no trigêmeo versus gânglio da raiz dorsal. As possíveis diferenças entre os sistemas trigeminal e espinhal em resposta a lesões e doenças, assim como outras características, são fascinantes. Espero continuar meu trabalho no JOFPH e alcançar, junto com meus colegas e toda a comunidade de DTM/DOF, o reconhecimento que merecemos.

« Voltar